
Entrevista
“Vivemos um narcisismo que a indústria da felicidade promove”
Igor Martins, Fotografia
Ana Mota, Textos e Vídeo
É nas questões relacionadas com a vida humana, nas suas mais variadas dimensões, que expressa grande parte do entusiasmo ao falar de uma vida dedicada à investigação e ciência. Alexandre Quintanilha nasceu em Lourenço Marques, atual Maputo, Moçambique, mas viveu em várias partes do Mundo, onde absorveu e espalhou conhecimento. Doutorado em Física pela Universidade de Witwatersrand, África do Sul, é investigador, professor catedrático e foi deputado à Assembleia da República.

Desenvolveu trabalho de investigação em diferentes áreas como biologia, neurociência, genética e, mais recentemente, biofísica. O seu currículo é extenso e multidisciplinar. Em que área se sentiu mais à vontade para descobrir dados novos?
Sempre trabalhei entre várias áreas, foi sempre o que mais me fascinou. Atualmente não faço experimentação. Converso com as pessoas, ajudo nas discussões, mas já não estou a fazer investigação propriamente dita. A área que continua a interessar-me muito é a forma como os seres humanos se adaptam ao stresse, mas não é o stresse psicológico, porque isso é muito complicado, é o stresse fisiológico.
O primeiro e o mais antigo stresse que estudei e que continua a interessar-me é o stresse do oxigénio. O oxigénio oxida, é por isso que o vinho se estraga, que a borracha fica mais dura e é por isso que começamos a ter manchas de cor na pele. Enquanto somos jovens os mecanismos de limpeza funcionam, mas à medida que vamos envelhecendo esses mecanismos já não são eficientes. Portanto, as manchas que aparecem na pele com a idade aparecem também nos órgãos e é por isso que os antioxidantes estão na moda. Desde que fui para Berkeley, na Califórnia, EUA, o stresse oxidativo foi a área que mais me interessou, não só no ser humano, mas também nos animais e nas plantas.
Fala das questões da saúde e da vida humana com muito entusiasmo. Como surgiu esse interesse?
No liceu era um mau aluno, passava com dez e estudava o mínimo necessário para passar. No quinto ano tive um professor de ciências naturais que fez uma coisa extraordinária: levou os alunos a visitar um ecossistema absolutamente fantástico, a Ilha da Inhaca, que fica em frente à cidade de Maputo, onde havia uma barreira de coral enorme e mangais. Passámos uma semana em Inhaca a explorar os ecossistemas e a partir desse ano comecei a estudar. Depois, quando entrei para a universidade, em Joanesburgo (África do Sul), não sabia muito bem o que queria fazer. Gostava muito de geometria descritiva, mas também gostava muito de física e das ciências naturais. Andava em dúvida e resolvi entrar em engenharia, mas só fiz o primeiro ano e acabei por mudar para a área da física e matemática. Quando cheguei a Berkeley, tive de começar a aprender a matar ratos, a produzir mitocôndrias e o stresse oxidativo foi a área que mais me interessou. Mais tarde, desafiaram-me a dirigir um centro sobre estudos ambientais, o Lawrence National Laboratory, e aí comecei a interessar-me muito por questões como até que ponto a inovação tecnológica estava a afetar a atmosfera e o mundo biológico. Quando fui para o Parlamento isso foi muito útil, porque uma das coisas que mais gostei de fazer foi ser relator da Lei de Bases do Clima, que é provavelmente uma das leis mais ambiciosas neste momento em todo o Mundo.


Para além de nos adaptarmos, vamos ter de reagir a elas. Será mais fácil pela via da legislação ou da consciencialização?
É pelas duas vias. Temos muita dificuldade em deixar de ter o conforto a que nos habituámos e o resto do Mundo quer ter o mesmo conforto. Porque é que África ou a Ásia não vão querer viver exatamente como vivem os europeus ou os americanos? É o que está a acontecer. Na China, desde 1965 até hoje, o consumo de energia per capita aumentou 16 vezes por pessoa. Na Índia, aumentou oito. Portanto, essas pessoas que querem ter o mesmo conforto que nós, vão continuar a consumir cada vez mais energia. Não tenho dúvidas nenhumas sobre isso. Temos de ter a consciência de que é necessário fazer com que a tecnologia e a inovação que estamos a desenvolver possa ir para os sítios onde é necessária.
A emergência climática é absolutamente real e cada vez mais emergente. Se por um lado a tecnologia deve estar ao serviço das pessoas, por outro é necessário sensibilizá-las para que mudem comportamentos…
Felizmente, isso está a ser feito. Este é um assunto que preocupa todos os partidos políticos. A forma como cada um quer gerir é que pode ser diferente. Uns estão mais preocupados com o aumento das desigualdades, outros estão mais preocupados com o investimento económico . Onde é que se vai tirar dinheiro para investir na resolução deste problema.

Foi deputado do Partido Socialista na Assembleia da República onde atuou, sobretudo, nas áreas do Clima, da Educação e da Ciência. As carreiras dedicadas à ciência e investigação deveriam cruzar mais com a política, com quem decide e legisla?
O conhecimento é um processo muito lento. A política não tem esse luxo e são exigidas decisões aos políticos quando ainda não existe toda a informação que gostariam de ter. Portanto, muitas das decisões têm de ser tomadas com conhecimento ainda frágil, faz parte porque são dois mundos diferentes. O que gostaria é que as decisões pudessem ser feitas de maneira a que se adaptassem à nova informação que aparece, aos novos desafios. A política é tão mais robusta quanto mais próxima estiver do conhecimento que existe naquele momento.
Durante os quase nove anos em que assumiu funções políticas quais foram os seus principais contributos ?
Aquela que se calhar vai afetar mais pessoas é a Lei de Bases do Clima, pelo facto de ter sete ou oito propostas, todas elas diferentes, mas com o mesmo objetivo. Gostei muito de falar com toda a gente, de perceber quais eram as preocupações e consegui, no fim, um documento que foi aprovado por quase todas as bancadas. A outra área em que também trabalhei com muitas outras pessoas foi a área da lei sobre a eutanásia, que é uma lei que já há muito tempo queria ver aprovada e conseguimos, finalmente. O meu grande desgosto é que não foi regulamentada.
Todas as áreas onde teve maior intervenção tocam a vida humana…
Com a vida e com a liberdade individual, que é uma coisa que prezo muito. Com o facto de cada um poder decidir como quer que a sua vida seja construída e fazê-lo de uma forma responsável. Isso foi uma coisa que aprendi com os meus pais, porque ambos tiveram uma vida não muito fácil. O meu pai foi perseguido politicamente pelo regime de Salazar e a minha mãe cresceu em Berlim dos anos 20, passou pela Primeira Guerra Mundial, que foi muito difícil para os alemães. Depois, viveu os anos 20 em que Berlim era a capital da ciência, das artes e por aí fora. Felizmente casou com o meu pai em 1930 e saíram da Alemanha antes do senhor do bigodinho chegar. Mas teve uma vida difícil.
Já teve oportunidade de dizer que o me first não ajuda a dialogar. Vivemos um problema de individualismo, de narcisismo excessivo?
Vivemos algum narcisismo que a indústria da felicidade promove. Estamos todos a ser sujeitos e submersos numa quantidade de publicidade que supostamente nos vai dar felicidade. A felicidade vem se adquirirmos mais coisas, mais roupa, mais carros, mais eletrodomésticos, se viajarmos mais. A indústria da felicidade é poderosíssima e toma conta daquilo que é o mercado. Estamos a ser manipulados - nem é preciso inteligência artificial - pela indústria da felicidade há séculos. Isto também afeta a saúde mental, porque se uma pessoa não consegue comprar aquilo que a indústria lhe quer vender, falta-lhe qualquer coisa. Devia falar-se mais sobre isso e mais sobre o facto de estarmos sujeitos ao seu impacto sobre as nossas vidas.
Estamos a ser manipulados - nem é preciso inteligência artificial - pela indústria da felicidade há séculos. Isto também afeta a saúde mental, porque se uma pessoa não consegue comprar aquilo que a indústria lhe quer vender, falta-lhe qualquer coisa. Devia falar-se mais sobre isso e mais sobre o facto de estarmos sujeitos ao seu impacto sobre as nossas vidas.
A perda de sentido de comunidade, também veio afetar a vida das pessoas?
Há muitas coisas, coisas corriqueiras, de todos os dias, que me continuam a chocar. Vamos a um restaurante e está uma família a jantar ou a almoçar e cada um está no seu tablet ou telemóvel. Aquela coisa de estar a conversar deixou de ser necessário. Cada um está na sua máquina, no seu mundo e não quer que interrompam. Não há movimentos de partilha.
Que desafios acha que a humanidade vai enfrentar no futuro ?
Para além dos desafios ambientais, vão existir desafios que dizem respeito à vida das pessoas. Um grande desafio para o futuro é a contraceção masculina. Está a começar a aparecer uma série de estudos muito interessantes sobre alterações hormonais que poderão fazer com que os homens produzam menos espermatozoides e, portanto, possam fazer uma contracepção eles próprios, sem ficarem dependentes da escolha da outra pessoa no processo. Isso é uma área que vai ter um sucesso enorme. Outra área é, hoje consegue-se produzir ovócitos e espermatozoides a partir de células do corpo. A muito curto prazo será possível criar células reprodutoras. Há uma data de coisas que vão acontecer para além dos desafios ambientais e isto é um mundo que nunca mais acaba.
Qual é o seu conceito de felicidade?
A felicidade é sentir-me confortável e sentir que atingi uma certa capacidade lúcida de olhar para o mundo à minha volta e perceber o que são problemas e oportunidades. De não ter medo de fazer escolhas. Aquilo que é mais importante hoje em dia no sistema educativo é transmitir a noção de que não devemos ter medo dos sonhos que temos. Olhando para trás, percebo que em grande parte fui capaz de fazer isso. Não só através da relação que tive com os meus pais, mas também com o Richard com quem já estou há 46 anos.


