
Cultura
Dentro de grades a música é liberdade e horizonte
Nelson Jerónimo Rodrigues, Texto
Catarina Alves e Anderson Santana, Fotografia
A prisão nunca foi um lugar para grandes sonhos, mas há muito que Nico BX e Camuflado partilhavam o desejo, quase secreto, de gravar uma música em conjunto. Era uma esperança vaga, também ela aprisionada, mas que surgia amiúde, tanta era a necessidade de “deitar cá para fora todo o sofrimento e angústias que há numa cadeia”. A oportunidade foi surgindo aos poucos, pela mão do cantor Dino D’Santiago e de Filipe Neves, professor no Estabelecimento Prisional do Linhó, em Sintra, onde os rappers cumpriam pena.
Juntos, criaram o “De Dentro Para Fora”, um projeto que usa a música, a poesia e a educação como meio de reinserção social, enquanto transforma a criação artística num momento de valorização pessoal e construção de futuro. “Ao início era só um clube de escrita e improviso onde gravávamos umas coisas num computador, mas quando o Dino ouviu o que fazíamos mandou-me logo uma mensagem a dizer que até chorou, que aquela música tinha uma qualidade muito boa. E isso mudou tudo na cabeça deles”, recorda Filipe Neves (nas imagens em baixo, com Nico BX), também ele músico, compositor e ativista sociocultural.


Quando conheceu as histórias pessoais de cada um dos reclusos, Dino D’Santiago envolveu-se no projeto de corpo e alma. “Ao longo de dois anos com estes artistas no Linhó, senti-me perto de Deus como nunca antes. O pouco tempo que dispunham para estarem connosco - três horas por semana - aproveitavam de forma intensa e os seus olhos brilhavam, mesmo que na noite anterior tivessem pensado que não valeria a pena continuar a viver”, escreveu o músico no site do “De Dentro para Fora”.
Os olhos de Nico ainda brilham sempre que fala na esperança que a iniciativa trouxe. “Eu, o Camuflado e os outros passávamos a semana a pensar nas quartas-feiras, quando íamos ao estúdio e ali ficávamos a conviver, a escrever, a cantar e a falar. Era como se não estivéssemos presos e ganhássemos asas. Aquele bocado transformava-se num momento de liberdade e acalmava toda a gente”, conta-nos o rapper, que, entretanto, saiu da prisão. O ex-recluso lembra-se bem do dia em que o sonho começou a ganhar forma, quando ouviu um instrumental e foi à procura do amigo para escreverem a letra da música que viriam a assinar. Chamaram-lhe “Sjkodjas di Vida” (“Escolhas de Vida”, em crioulo) e fala dos caminhos que se podem seguir, dentro e fora da prisão, porque, afinal, “A vida é de Deus”, mas “o futuro é nosso”, como se ouve no tema.
Esta é uma das 11 músicas do álbum "Di Dentu Pá Fora", lançado este ano, com produção de Berlok e direção de Dino D'Santiago, enquanto a capa é assinada pelo artista Alexandre Farto, também conhecido por Vhils. Além de Nico BX e Camuflado, podem ouvir-se ainda os rappers Babidi, CiiJames, Kappa, Kollin Shakur, Mikee, Pallex Sombra e Tony Bau, o músico Real Saulin, e o cantor João Torres, todos reclusos ou ex-reclusos da prisão do Linhó. Com o apoio de vários músicos, artistas, investigadores e técnicos, dão voz a uma coletânea de canções que cruzam influências afro e cabo-verdianas, ciganas e do rap, entretanto também gravadas em videoclipes.


Gangs e etnias unidos pela música
“Um branco a cantar em crioulo?”, estranhou Dino D’Santiago, quando ouviu Nico BX pela primeira vez. A surpresa rapidamente se transformou em interesse a admiração mútua. “Quando vi que o Dino estava a ajudar-nos fiquei feliz e orgulhoso por cantar em crioulo, não só porque é a língua que mais falamos entre nós na prisão, mas também porque sempre ouvi as canções dele”, explica-nos o rapper, junto a um graffiti em São Marcos (Cacém) que homenageia o amigo Bruno Barros, assassinado em 2020.
Para Dino, os artistas que conheceu no Linhó continuam a ser uma inspiração, não só para a música, mas também para a vida. “A sua esperança ensina-me a ser mais grato. Fazem-me responsável pela minha vida. Lembram-me de que sou livre, que tenho tudo e que faço tão pouco. Fazem muito mais por mim do que eu por eles”, escreveu o músico algarvio, que fez questão de receber naquela prisão a Medalha de Mérito Cultural, atribuída em 2023.
Entre muros altos, a música também tem o condão de aliviar tensões, sempre latentes, e “até é possível que tenha conseguido juntar gente de bairros e gangues opostos, além de envolver a comunidade cigana, normalmente mais fechada”, revela Filipe Neves. “E isso deve-se ao facto de estarmos todos para o mesmo, a torcer para que isto, de facto, funcione”, acrescenta. O professor recorda ainda o dia em que levou à prisão o grupo Nice Groove Batucada, do qual é fundador, que deixou “membros de gangues rivais a cantar juntos a música ‘Felicidade’, uma coisa incrível”.
Felicidade é, precisamente, a palavra que Nico BX encontra para descrever o “De Dentro Para Fora” porque “a música é capaz de nos virar a alma, para o lado bom, sempre que estamos nervosos ou a pensar no sofrimento que passámos na prisão”. Para o futuro, guardou mais um sonho: que o projeto volte a juntar todos os rappers, “mas agora cá fora”, para um novo álbum. Com a ajuda da música, promete fazer as melhores escolhas de vida.


